quarta-feira, maio 17, 2006

E já agora só mais uma COISA...

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"Código Da Vinci": Somos todos parte do fenómeno




Antes de quarta-feira, dia da estreia no Festival de Cannes, ninguém saberá exactamente como é "O Código Da Vinci", o filme. Milhões de pessoas conhecem a história - foram 40 milhões as que até agora já compraram o livro de Dan Brown, fazendo dele um dos maiores "best-sellers" de sempre - mas ignora-se ainda se o filme é uma adaptação fiel da obra do escritor norte-americano, ou se a produção terá cedido às enormes pressões da Igreja Católica. O segredo que rodeou a produção do filme faz parte da impressionante máquina de propaganda posta em marcha para o lançar. Os visionamentos para a imprensa, que geralmente acontecem uma ou duas semanas antes da estreia, desta vez são feitos na véspera do filme chegar às salas.

O "outro lado" - o mundo católico indignado com as teses desenvolvidas por Dan Brown - também está pronto. Há uma corrente que defende o boicote do filme, e outra, mais activa, que acha que este deve ser aproveitado para esclarecer o público e para combater as teses que estão na base de "O Código Da Vinci" - o que é uma prova de como as mentalidades mudaram desde a campanha católica de 1988 contra "A Última Tentação de Cristo" de Martin Scorsese.

Só dois exemplos de uma impressionante campanha mundial: em França, onde o filme será visto primeiro, o delegado para a cultura da diocese de Nice, padre Vincent-Paul Toccoli, organiza no dia 17 uma projecção-debate. "Fiz a mesma coisa com "A Paixão de Cristo" de Mel Gibson", explica Toccoli. "E Tom Hanks [que interpreta a personagem principal, o professor Robert Langdon] é um actor de que gosto muito". E na Austrália, a Igreja Anglicana preparou uma campanha de publicidade em 250 cinemas. Na estreia do filme os espectadores poderão ver um anúncio que mostra Jesus Cristo a ouvir, estupefacto, a tese de que a Igreja mentiu sobre ele durante 2000 anos.

A polémica em torno de "O Código Da Vinci" surge precisamente por isso: o livro, que é basicamente um "thriller", parte da ideia de que houve uma conspiração da Igreja para esconder o facto de que Jesus e Maria Madalena teriam casado e tido um filho, e que, portanto, haveria uma descendência de Cristo que chegou até aos nossos dias - segredo que teria sido guardado por uma irmandade secreta, o Priorado de Sião.

A Sony, o estúdio produtor do filme realizado por Ron Howard ("Apolo 13", "Uma Mente Brilhante"), preocupou-se com o impacto negativo desta passagem para cinema do livro de Dan Brown - ou pelo menos preocupou-se o suficiente para contratar Jonathan Bock, um especialista de "marketing" que tem como característica fundamental ser um conhecedor das sensibilidades cristãs, segundo a revista francesa "Première".

Além disso, a Sony consultou vários peritos religiosos para saber se deveria introduzir alterações ao guião original. Alguns destes peritos sugeriram que se tornasse a tese de que Jesus e Maria Madalena teriam sido pais um pouco mais ambígua, e que não se identificasse como a Opus Dei (como faz Dan Brown) a organização sinistra que é descrita no livro. Se as sugestões foram seguidas ou não ninguém tem a certeza, mas há sinais de que não foram.

Numa entrevista à revista "Studio", Audrey Tautou, a actriz francesa que Ron Howard escolheu para fazer o papel de Sophie Neveu, a protagonista do filme, diz que o guião (dado que ela própria não viu o filme finalizado) é "muito fiel" ao livro. "Escreveram-no mantendo no espírito o interesse dos leitores por esta história", explica. "Nada foi adocicado. É evidente que tomaram o romance como pura ficção e trataram-no como tal".

manter ou alterar. Era precisamente esse o dilema que os produtores enfrentavam: manter a história, para não hostilizar os católicos; ou alterá-la, agradando aos católicos mas correndo o risco de perderem o público que fez o sucesso do livro. De concreto sabe-se apenas que receberam cartas da Liga Católica e da Opus Dei (que, abandonando o seu habitual secretismo, se lançou numa verdadeira operação de relações públicas), pedindo que o filme deixasse claro que se trata de uma obra de ficção, e que as teses que apresenta não são a realidade.

O problema é que muitos dos que leram o livro acreditam nessas teses, até porque Dan Brown disse sempre que se tinha baseado em factos históricos. Efectivamente, o escritor inventou muito pouco. Dan Brown limita-se a criar uma estrutura de "thriller" para teorias que já tinham sido apresentadas noutros livros, nomeadamente "O Sangue de Cristo e o Santo Graal", de Michael Baigent e Richard Leigh. Este livro foi um "best-seller" (enfim, à sua medida, não à medida de "O Código Da Vinci") nos anos 80, mas depois do sucesso de Brown, Baigent e Leigh decidiram processá-lo acusando-o de plágio, apesar de o próprio Brown assumir que "O Sangue de Cristo e o Santo Graal" foi uma das suas fontes de inspiração.

Rodeado de tanta expectativa e de tanto mistério, o filme não foi fácil de fazer. A produção viu serem-lhe recusados os pedidos para filmar em alguns dos principais locais históricos referidos no livro, nomeadamente a abadia de Westminster, em Londres, e a igreja de Saint-Suplice, em Paris (que desde há dois anos exibe um cartaz onde se lê que "contrariamente a fantasiosas alegações num recente romance "best-seller", [esta igreja] não é o vestígio de um templo pagão; nenhum templo desse tipo alguma vez existiu aqui").

Para filmar no Museu do Louvre, essencial na história, Ron Howard teve que falar directamente com o Presidente francês Jacques Chirac e com o ministro da Cultura, Renaud Donnedieu de Vabres. O acordo fez-se, na condição de a equipa só filmar durante a noite e às terças-feiras, dia em que o museu está fechado, e de pagar, segundo a "Studio", 24 mil euros por dia, mas 70 mil para filmar a pirâmide de vidro no exterior da entrada principal.

A notoriedade do livro permitiu ao Louvre atingir um recorde de 7,5 milhões de visitantes no ano passado, e a própria igreja de Saint-Suplice, apesar de todas as suas reservas, recebeu no Verão de 2005 mais 20 mil visitantes do que o habitual. Paris tem, aliás, tirado o devido partido do fenómeno: as agências de viagem propõem circuitos para descobrir os edifícios e as obras citadas no livro, visitas ao Louvre e "caças ao tesouro" - e há quem siga depois para Londres e a Escócia, sempre na pista dos heróis de "O Código Da Vinci".

Nem toda a gente ficou satisfeita pela utilização do Louvre num "blockbuster" de Hollywood, em que há referências inexactas a obras que estão no seu interior e até à geografia de Paris, sublinha o "New York Times", num artigo sobre as condições das filmagens dentro do museu, intitulado "Por amor de Deus, não toquem na Mona Lisa".

As regras dentro do Louvre eram extremamente rígidas: não se podia tocar ou iluminar directamente nenhuma peça de arte, todo o equipamento devia ser mantido longe destas, não podia ser colocado "sangue" ou "desenhos místicos" no chão de madeira, e a equipa de filmagens não podia levar consigo nem comida nem bebidas - restrições que Ron Howard considerou "totalmente compreensíveis".

Houve, naquele espaço, momentos quase surreais, quando Tom Hanks ou Ron Howard, no meio das suas corridas de um lado para o outro no museu, de repente se viam sozinhos (à excepção de um guarda) em frente da Mona Lisa de Leonardo Da Vinci. Mas todas as cenas em que as obras de arte são manuseadas - com pouca delicadeza, dadas as circunstâncias da história - foram filmadas nos estúdios de Pinewood, nos arredores de Londres, e os quadros de Caravaggio ou de Leonardo Da Vinci usados aí eram cópias.

Ron Howard surpreendeu também pela escolha de Audrey Tautou para o principal papel feminino. É a própria que conta à "Studio" como, desde o primeiro momento em que a contactaram para fazer o "casting", nunca acreditou que viria a ser escolhida. O realizador tinha decidido que queria uma actriz francesa, já que a personagem era francesa e por isso, a partir de certa altura, a escolha era entre actrizes como Julie Delpy, Juliette Binoche, Sandrine Bonnaire, Vanessa Paradis, Sophie Marceau, ou Linda Hardy. Na fase final, só havia dois nomes: Linda Hardy e Audrey Tautou. Howard acabou por escolher esta.

A actriz - que quando lhe propuseram pela primeira vez fazer o "casting" estava "à beira da piscina, no México" e não tinha nenhuma vontade de voar para Paris - continuou com uma sensação de irrealidade, mesmo depois das filmagens terem começado. "Nas primeiras sessões de trabalho em Londres", contou à "Studio", "lembro-me que fizemos ensaios de câmara no dia seguinte a minha chegada. Quando me estavam a maquilhar, e estava sentada ao lado de Tom [Hanks], fui tomada por um riso nervoso. Tinha a impressão de estar no meio de uma piada, de ser um efeito especial que tinham posto ao lado dele".

Mas Audrey acabou por vencer o medo de estar em entrar em algo muito maior do que ela. E - tal como Paris, o Louvre, a igreja de Saint-Suplice, Ron Howard, Tom Hanks, Jack Chirac, Michael Baigent e Richard Leigh, a Igreja Católica, a Opus Dei, os 40 milhões de leitores do livro, e os milhões que agora esperam para ver o filme - acabou por se render à frase que atravessa os enormes cartazes de promoção de "O Código Da Vinci": "Seja parte do fenómeno". Difícil é não ser.

Alexandra Prado Coelho (PÚBLICO)